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​​​​​​​Pe. José Miguel Cardoso | 31 Mar 2023
Os sapatos do Danúbio
Pensar a ação política a partir da podologia
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  © DR

1. Margens do rio Danúbio. Entre 1944 e 1945, as milícias da Cruz de Ferro (o partido húngaro que defendia os mesmos ideais do partido nazista alemão), mataram inúmeros judeus junto ao rio Danúbio, do lado de Peste da cidade de Budapeste (Hungria). Alinhados no muro da margem deste rio, estes deveriam estar voltados para o rio, a fim de serem alvejados pelas costas e caírem nas águas fluviais. Mas antes, deveriam tirar os sapatos.

Em memória dessas vítimas, o realizador Can Togay e o escultor Gyula Pauer edificaram, a 16 de abril de 2005, um memorial a esta tragédia, colocando cerca de 60 pares de sapatos dessa época (de diversos tamanhos e modelos para homens, mulheres e crianças) feitos em ferro e bronze, estando cravados no local destes assassinatos. Esta forte imagem levanta uma pergunta a qualquer ideologia política de qualquer época histórica: qual é a finalidade última da política, proteger os pés dos cidadãos ou apropriar-se dos seus sapatos?

 

2. Os pés dizem muito daquilo que nós somos enquanto humanos. Se os cinco sentidos genéricos do corpo humano (visão, audição, olfato, sabor e tato) permitem o contato com a realidade, sendo a primeira fonte de conhecimento (Aristóteles), os pés são o elemento que acaba por potenciar todos estes cinco sentidos. E por quê? Porque, ao permitir a mobilidade, este permitem que, ao perto, se possa ver melhor, ouvir melhor, cheirar melhor, saborear melhor e tatear melhor.

Mas é também nos pés onde se encontra o tendão mais forte de todo o corpo humano: o famoso “tendão de Aquiles”, cujo nome advém desta célebre figura da mitologia grega que, embora forte, foi derrotada com um golpe neste tendão (R. Graves). Por estes dois motivos, talvez devêssemos dar mais valor aos pés, não apenas por causa desta sua eficiência biológica... mas também no que diz respeito a uma “podologia da fé”. Aliás, é curioso notar como poderíamos narrar o evento central da nossa fé (mistério pascal), que celebraremos em breve, precisamente a partir desta metáfora dos pés em três momentos podológicos.

 

3. A Última Ceia de Jesus com os seus discípulos, que antecede o evento da Paixão, é marcada por um primeiro momento podológico: Jesus, ao contrário dos costumes judaicos, não é lavado nas mãos por um empregado, mas é Ele próprio (o mestre) quem lava os pés dos seus discípulos (Jo 13,4-5), como que indicando o método, a forma e o estilo da caridade cristã a ser executada.

Sobre esta passagem bíblica, a colossal música intitulada «Senhor, tu vais lavar-me os pés», composta pelo Maestro António Azevedo Oliveira, confere uma ulterior intensidade, dramaticidade e interioridade às palavras daquele diálogo profundo entre Pedro e Jesus, colocando-nos a todos nós dentro dessa mesma narrativa.

 

4. Um segundo momento podológico ocorre aquando da Paixão e Morte de Jesus. Primeiro, o caminho doloroso que Jesus percorre com a cruz até ao calvário, a via dolorosa, e que ainda hoje recordamos na celebração da “via-sacra”. Segundo, reparamos que não apenas as mãos, mas também os seus pés foram pregados na Cruz (como determinava a regra romana). E sendo pregado na Cruz, isto demonstra que Jesus não fugiu da Cruz (como afirmara a heresia docetista), mas carregou-a e permaneceu nela até ao fim, até ao último respiro, até à morte. Apesar do pedido dos judeus, as suas pernas não foram quebradas pelos soldados romanos, porque já estava morto (Jo 19,33), cumprindo-se assim a profecia pascal que previa este cenário (Ex 12,46; Nm 9,12; Sl 34,21).

 

5. E a ressurreição abarca o terceiro momento podológico. Na manhã de Páscoa, vemos uma corrida interessante narrada pelo evangelista João: quando sabem da notícia do túmulo vazio, os discípulos Pedro e João vão a correr ao túmulo (Jo 20,3-4). Esta «corrida da fé» (H. U. von Balthasar), enquanto corrida ao túmulo, demonstra como a nossa fé não pode reduzir-se a uma simples teoria (sob o risco de cair numa mitologia anestesiante, numa narrativa epopeica ou numa utopia ilusória), mas precisa de sinais, de materialidade e de práxis, ou seja: precisa de partir da concretude do túmulo (ainda que este seja um elemento secundário).

Mas esta corrida da fé não termina aqui, pois existe uma “segunda parte” da corrida: o anúncio da ressurreição pelo «mundo inteiro» (Mc 16,15). Dito de um outro modo, a ressurreição não é um dado a ser apenas professado pelo boca, mas também a ser anunciado pelos pés que nos deslocam até ao encontro dos outros. E como «são belos sobre os montes, os pés do mensageiro que anuncia a paz, que apregoa a boa-nova e que proclama a salvação» (Is 52,7).

 

6. Por muito que nos custe, temos de aceitar que a ressurreição não compreende apenas uma espera na certeza de uma vida depois da morte, mas esta implica também diversas consequências para o modo como vivemos a vida antes da morte (J. Moltmann). Entre as quais, o desafio de “fazer caminhos planos para os nossos pés” (Pr 4,26; Hb 12,13). Logo, um cristianismo que não assuma esta função política, é um cristianismo que perdeu a sua identidade basilar (J.B. Metz).

O que isto significa? Significa que os sapatos do Danúbio são um sinal permanente que questiona todo e qualquer desejo político de sobrepor a ideologia à realidade (EG 231-233). Hoje, continuam a existir muitos “sapatos do Danúbio” nas mais diversas formas e modalidades, dos quais nós os cristãos devemos ser a voz da sua defesa. E por quê? Porque, no momento do juízo final (Mt 25,31-46), talvez o Senhor também nos venha a dizer: “estive descalço e tu não partilhaste comigo os teus sapatos”.

Com este propósito, votos de uma Santa Páscoa a todos os leitores e que possamos viver a fé não apenas com o coração... mas também com os pés!

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