Arquidiocese de Braga -

9 outubro 2016

A alegria do amor - 23

Fotografia wideonet

Carlos Nuno Salgado Vaz

O número da mais famosa nota de rodapé: 351

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Sobre as normas a seguir no discernimento do agir de uma pessoa, Francisco diz ser mesquinho considerar apenas se tal agir corresponde ou não a uma lei ou norma geral, pois isto não basta para discernir e assegurar «uma plena fidelidade a Deus na existência concreta de um ser humano».

Em tal julgamento, devemos incorporar sempre o que ensina o insuspeito São Tomás de Aquino: «Embora nos princípios gerais tenhamos o caráter necessário, todavia, à medida que se abordam os casos particulares, aumenta a indeterminação (…). No âmbito da ação, a verdade ou retidão prática não são iguais em todas as aplicações particulares, mas apenas nos princípios gerais; e aqueles onde a retidão é idêntica nas próprias ações, esta – a retidão – não é igualmente conhecida por todos. (…) quanto mais se desce ao particular, tanto mais aumenta a indeterminação» .

Isto porque as normas gerais, na sua formulação, não podem abarcar absolutamente todas as situações particulares. E aquilo que faz parte de um discernimento concreto de uma situação particular não pode ser elevado à categoria de norma (número 304).

Em palavras mais singelas: a norma geral não pode ter em conta todos os casos particulares. E a solução encontrada para um determinado caso particular não pode ser elevada a norma geral, porque um tal procedimento geraria uma casuística insuportável e colocaria em risco os valores que se devem preservar com particular cuidado.

A ajuda dos sacramentos

As leis morais não são «pedras que se atiram contra a vida das pessoas». A Comissão Teológica Internacional pronunciou-se neste mesmo sentido: «A lei natural não pode ser apresentada como um conjunto já constituído de regras que se impõe ‘a priori’ ao sujeito moral, mas é uma fonte de inspiração objetiva para o seu processo, eminentemente pessoal, de tomada de decisão».

De tal modo que São Tomás chega a afirmar que «se existir apenas um dos dois conhecimentos – o da norma ou o da situação particular – é preferível que este (o conhecimento particular) seja o conhecimento da realidade particular, porque está mais próximo do agir».

Indo mesmo mais longe: «Por causa dos condicionalismos ou dos fatores atenuantes, no meio de uma situação objetiva de pecado – mas (que) subjetivamente não seja culpável ou não o seja plenamente –, (é possível) que a pessoa possa viver em graça de Deus, possa amar e possa também crescer na vida da graça e da caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja».

E é a propósito desta última afirmação que surge a famosa nota 351, que reza assim: «Em certos casos, poderia haver também a ajuda dos sacramentos. Por isso, ‘aos sacerdotes, lembro que o confessor não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor. (…) E de igual modo assinalo que a Eucaristia não é um prémio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos’».

O acento é posto no discernimento feito com verdade e misericórdia. É ele que deve ajudar a encontrar os caminhos da graça e do crescimento no meio dos limites. As situações não podem ser catalogadas simplesmente de brancas ou pretas. Partir disso é fechar muitas vezes o caminho da graça e do crescimento, desencorajando percursos de santificação que dão glória a Deus.

É que «um pequeno passo no meio de grandes limitações humanas pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem não tem que enfrentar sérias dificuldades (305).

Caridade fraterna

A caridade fraterna é a primeira lei dos cristãos, porque «o amor cobre a multidão dos pecados» (1Pedro 4, 8), e a esmola expia o pecado, tal como a água apaga o fogo ardente (Ben-Sirá 3, 30). E socorre-se das palavras de Santo Agostinho: «quando se nos proporciona a ocasião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e da qual podemos tomar a água para extinguir o incêndio» (305).

Discernir exige tempo, atenção misericordiosa, verdade, sinceridade, desejo ardente de poder reverter a situação objetivamente irregular e de tudo fazer para que tal seja possível.

Por isso, a questão não é se um divorciado recasado pode ou não comungar. É o conhecimento da vida concreta da pessoa em causa e a iluminação que sobre ela é possível lançar com base na palavra de Deus, no que nos revela do seu amor, perdão e misericórdia, e das disposições da pessoa em tudo fazer para superar a situação objetiva, sem nunca descurar a vida cristã e de oração.

Só então o próprio, devidamente iluminado e ajudado, poderá discernir o que corresponde melhor ao desígnio do amor de Deus para com cada um de nós, nas circunstâncias concretas que nos toca viver.