Arquidiocese de Braga -

7 fevereiro 2016

Para uma ecologia dos saberes

Fotografia

Homilia no dia da UCP, na Sé Catedral de Braga

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Continuamos empenhados na tarefa de delinear as características capazes de definir o perfil do discípulo de Cristo neste tempo de incredulidade e indiferença religiosa. Compete-lhe, como Paulo escreve aos cristãos de Corinto, transmitir o que recebeu, como experiência pessoal mas integrado numa cadeia histórica que nos conduz a Cristo. Não somos proprietários que descobrem, através das suas capacidades, o que se pensa ser mais adequado. Acolhemos a Palavra para a transmitir em vestes de modernidade, tornando-a compreensível e, assim, continuar a encantar corações e inteligências.

A transmissão não é privilégio de poucos. Toca a cada um que deve ser capaz, nos caminhos de Isaías, ousar afirmar: “eis-me aqui: podeis enviar-me” e deixar os barcos do comodismo para se “fazer ao largo”, sem temor, chegando ao encontro com todos os dinamismos e enigmas do homem moderno. O discípulo é aquele que vive em atitude de partida, sem temor, chegando ao coração da humanidade. Este encontro com os contornos da existência humana obriga o cristão a estar presente no mundo dos saberes para, também aí, deixar sementes de uma doutrina humano-divina. Por isso existem as Universidades Católicas. Em Portugal, celebra-se o Dia da Universidade Católica no primeiro Domingo de Fevereiro. Pretende-se que os cristãos se comprometam com o seu futuro através da generosidade vivida no peditório da eucaristia e acreditem na qualidade do ensino que aí é ministrado, inscrevendo-se nos diversos cursos, assim como os professores e funcionários aproveitem este dia para se reassumirem como agentes da inculturação do evangelho nos saberes humanos. É por isso importante o tema escolhido para cada ano. Este ano “cultivar a ecologia dos saberes”. Que poderá sugerir-nos neste itinerário de redescobrir a identidade do discípulo?

A Universidade, ao longo do tempo, deixou de responder somente à necessidade de fazer ciência e assumiu um espírito mais pragmático, acentuando uma visão utilitária do conhecimento. Pensa-se que o que importa é o que parece útil, com capacidade de resolver os problemas imediatos da sociedade e respondendo às necessidades concretas e emergentes. Daí surja uma valorização cada vez maior pelo uso competitivo pelas inovações tecnológicas. Também aqui aparece a cultura como uma mera mercadoria em concorrência com tantas outras vertentes humanas. Por causa disto, e quem pensa um pouco sabe muito bem, estamos a assistir a uma perda do valor das ciências humanísticas e de toda a riqueza que estas áreas trazem para a formação de uma sociedade que se deseja mais fraterna e humana. Preparam-se os estudantes para o mercado e não para possuírem uma verdadeira cultura que irá desenvolver a pessoa no seu todo e preparar o cidadão para um pensamento crítico. Deseja-se, sobretudo, uma intervenção social e a protecção dos valores e princípios fundamentais e democráticos que estão na base da sociedade ocidental, de modo a fazer com que prevaleçam as produções materiais em detrimento das verdadeiras expressões culturais. Formam-se competências e não se desenvolvem ideias capazes de dar consistência a um pensamento crítico, desaparecendo assim os critérios da verdade para reconhecer somente o que é considerado científico.

Quando hoje nos é proposto que a Universidade Católica exista para cultivar a ecologia dos saberes, está-se a lançar um desafio para ela mesma e para os católicos. Na verdade, torna-se urgente centrar-se na verdade do ser humano, com todas as consequências que daí possam advir. Só o desejo da verdade é capaz de dar vida a quem já anda cansado de palavras, emails, textos que proporcionam uma perda de sentido e geram intranquilidade e insegurança quanto ao futuro.

Na verdade, quando falamos em ecologia, não estamos apenas a referir a relação com a Natureza na sua componente não humana e muito menos na sua divinização. Como o Papa Francisco dizia na Laudato si’, ela significa o cuidado da casa comum (Oikos), com a atenção a tantos quantos nela habitam. Se o Homem deve estar no centro, a dimensão antropológica é fundamental, pois a organização da Natureza não pode ser separada da organização da vida social como modo de acreditar no valor e importância das relações entre humanos para gerar um equilíbrio de vida, evitando modos injustos de organizar a convivência humana, sobretudo na adequada relação entre a riqueza e a pobreza, entre o exercício do poder e a dominação. Quando as relações humanas passam pelo conhecimento, este pode facilitar ou dificultar o equilíbrio. Na verdade, as sociedades contemporâneas estão dominadas por uma pluralidade de áreas do saber, extremamente especializadas. Isto pode servir ou fragmentar e criar mundos hostis e fechados. As diversas áreas do saber quando se radicalizam isolam-se e, muitas vezes, entram em conflito com as outras.

É importante a pluralidade mas é fundamental o reconhecimento da importância dos diversos saberes. Não é só uma visão positiva apoiada nas ciências exactas mas a tradição humanista é fundamental e vem reconhecer o valor do saber ético e teológico.

Falando da ecologia dos saberes, queremos reconhecer a consciência dos limites de cada um e acreditar que só a relação entre eles oferece a base para um humanismo com sentido de verdade e felicidade. Uma sociedade que não cultiva a interdisciplinaridade e o reconhecimento de importância de todos os saberes pode gerar muitas neuroses. Todos os saberes são fundamentais para a construção da Casa Comum, que deve ser habitada por humanos de uma forma verdadeiramente humana.

É aqui que a Universidade Católica, sem colocar de lado as outras, deve colocar a sua reflexão. Existe uma interligação a todos e de todos os caminhos. Desconsiderar alguma delas, nomeadamente o conhecimento teológico, não poderá proporcionar um futuro equilibrado para a humanidade. Importa, por isso, que a Universidade Católica cultive uma verdadeira ecologia dos saberes.

Se o discípulo se identifica pela transmissão da verdade, o fazer-se ao largo significa esta visão nova do conhecimento. Quando a sociedade não consegue manifestar esta harmonia aceitando e respeitando todos os saberes, não pode pretender um futuro humano.

Neste dia rezemos por quantos trabalham na Universidade Católica, para que se consciencializem da missão que lhes está confiada. Façamos cumplicidade com ela através da generosidade e da orientação de jovens para a frequência dos seus cursos. Acreditemos neste projecto, que sendo Ensino particular, não pode ser marginalizado ou desconsiderado. É a liberdade de ensino que o exige e nós sabemos como ele é importante, não só por razões doutrinais, mas pelo papel e contributo para um Portugal melhor.

 

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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