Arquidiocese de Braga -

6 março 2019

Transcender-se em tempo quaresmal

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Homilia em Quarta-feira de Cinzas

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Abre-se, hoje, a grande porta que nos introduz no tempo da Quaresma e, mais tarde, no mistério da paixão, morte e ressurreição de Cristo.

Um tempo longo, de serena introspecção, que visa antes de mais aproximar-nos do nosso único Mestre. Dele aprendemos a arte do despojamento, da humildade e da capacidade de, quando necessário, recomeçar a vida para construir a casa sobre a rocha.

1. O primeiro e principal pilar do itinerário quaresmal é a conversão pessoal. Sem gente renovada interiormente, o testemunho cristão não será credível. É nesse sentido que Jesus alerta no Evangelho que acabámos de escutar: “Tende cuidado em não praticar as vossas boas diante dos homens, para serdes vistos por eles”. Se as boas obras não forem consequência de uma profunda convicção, de uma genuína vontade de ajudar o próximo, então soarão a falso. Só aquilo que é genuíno e transparente resiste ao crivo da sociedade, da opinião pública e do mundo. Vivemos tempos que reclamam autenticidade. A melhor demonstração da vitalidade dos cristãos está na vida de cada um, sacerdotes e leigos, e nas comunidades testemunhar alegremente os conteúdos do Evangelho.

2. A Quaresma recorda-nos também o deserto: aquele tempo e espaço onde somos confrontados connosco mesmos e decantamos tudo o que é superficial para nos apegarmos ao essencial. Ao mesmo tempo, sabemos que existem muitos desertos onde a planta da vida dos cristãos e das comunidades deve crescer. Os frutos espirituais e humanos começam a surgir, como sabemos, quando se eliminam atitudes e gestos que impedem o florescimento de uma sociedade mais humana e cristã. Neste sentido, a ideia da “poda” presente na caminhada quaresmal da Arquidiocese de Braga é sugestiva, exigente e interpeladora. Queremos comunidades acolhedoras e missionárias, mas não atingiremos este objectivo sem uma estratégia centrada na pessoa, de modo a tornar a conversão um compromisso pessoal e comunitário. Não tenhamos medo de interiorizar o Evangelho que, por sua vez, colocará em questão a nossa vida. 

3. A Igreja Arquidiocesana propõe uma caminhada que visa erradicar da vida o mundanismo, o isolamento, a violência, o egoísmo, o pessimismo e a indiferença. Não são simples palavras. São obstáculos reais que nos impedem de dar frutos espirituais, de crescer na esperança e de viver na alegria cristã.

O Evangelho indica-nos, uma vez mais, caminhos que poderão causar estranheza à mentalidade contemporânea mas que são essenciais para uma vida cristã. Quando tudo nos empurra para o estrelato, para o exibicionismo e show-off, a pedagogia de Cristo ensina-nos o caminho da humildade, do trabalho escondido e da gratuidade. “Quando rezares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa”. O caminho é o da interioridade, de ser fermento no meio da massa. Só assim seremos capazes de ajudar a curar as feridas pessoais e da sociedade, os dramas da nossa relação com a natureza, como nos recorda o Papa Francisco para a Quaresma deste ano, assim como as chagas da própria Igreja. Retirar as pedras e os obstáculos de que há pouco falávamos é algo que pode dar um rosto novo à Igreja. Não só é possível como é necessário, hoje mais do que nunca. É grande a responsabilidade de todos.

A Quaresma é, então, um caminho de interioridade que cada um deve assumir e concretizar pessoalmente. É tempo de oração a partir da Palavra de Deus e de conversão. O jejum, entendido como desapego às coisas secundárias, e que nos iludem na procura da felicidade, pode ser um caminho a trilhar. Sugiro também um clima de introspecção, de meditação e até de um certo afastamento dos espaços habituais por onde andamos para descobrir novos espaços. Não podemos, por fim, esquecer a generosidade das esmolas e da partilha de tudo quanto é supérfluo em ordem a uma sociedade mais igual e fraterna.

Habitualmente a Igreja propõe-nos o Contributo Penitencial ou a Renúncia Quaresmal. Um hábito que não pode tornar-se mera rotina para tranquilizar a nossa consciência. É, pelo contrário, um dinamismo quotidiano com expressões muito variadas e discernidas por cada um.

À semelhança de anos anteriores, parece-nos ser necessário continuar a apostar em duas necessidades: o Fundo Partilhar com Esperança e a paróquia de Sta. Cecília de Ocua. O Fundo Partilhar com Esperança, infelizmente, continua a ser tremendamente necessário. Há situações de pobreza escondida, impossibilidade de pagar medicamentos, água, luz e rendas. São muitas as histórias de vida e de sofrimento que chegam ao nosso conhecimento. Uma coisa é comum a todas elas: a vergonha da situação em que se encontram. É, por isso, importante reforçar este Fundo. As contas e o modo como é aplicado encontram-se à disposição de quem quiser consultar. Podemos assegurar que este Fundo tem sido motivo para que a esperança ressuscite nos corações de muitas famílias.

Existe no coração da Igreja um sonho missionário que urge concretizar. A missão projecta-nos por novos caminhos, os quais nos conduzem a recantos da Humanidade para aí deixar sementes de esperança que florescerão para o bem da Igreja e do mundo.

A paróquia de Sta. Cecília necessita também de estruturas básicas para testemunhar o Evangelho do amor naquelas longínquas paragens. Urge a construção de uma casa para os missionários que enviámos, sacerdotes e leigos. Queremos ainda construir um espaço para acolher uma comunidade religiosa que dará estabilidade à missão, mesmo na possível ausência de sacerdotes, assim como uma escolinha para as crianças. São estruturas que se encontrarão no centro da paróquia mas não esqueçamos que ela é constituída por 96 lugares onde é igualmente importante celebrar a fé, anunciar o Evangelho e viver a caridade.

Nesta Quaresma deixemo-nos interpelar pela simbologia da “poda”. É mensagem para cada um, muito concreta e inspiradora de acções corajosas. Levemos a sério o que ela sugere. Como consequência desta conversão, a Páscoa mostrará Cristo vivo e operante nas nossas comunidades acolhedoras e missionárias.

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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