Arquidiocese de Braga -

1 janeiro 2021

Promover a cultura do cuidado

Fotografia

Homilia na Solenidade de Sta. Maria, mãe de Deus

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Há 54 anos que, no primeiro dia de Janeiro, celebramos o Dia Mundial da Paz. Celebramos a Festa de Nossa Senhora Mãe de Deus e reflectimos sobre a urgência de construirmos um mundo de paz, entre as pessoas e as nações, através de uma fraternidade com origem no amor de Maria, Mãe de toda a Humanidade. O Santo Padre redigiu uma mensagem dirigida à Igreja Universal, mas na esperança de que chegue aos responsáveis das organizações internacionais e dos governos, do mundo económico e científico, da comunicação social e das instituições educativas. 

Para este ano, a reflexão, que deve ser feita em primeiro lugar por nós católicos do mundo inteiro, sintetiza-se na afirmação “A cultura do criado como percurso de paz”. É tudo muito claro e fácil de entender. Para realizarmos o percurso da paz, no dia a dia da vida e das instituições, teremos de promover a cultura do criado. 

O Papa Francisco usa, com muita frequência, a palavra cultura, acrescentando-lhe palavras a sublinhar a importância de determinadas realidades. Para compreendermos quanto nos vai sugerindo com palavras diferentes, devemos reflectir sobre o que entendemos com a palavra cultura, que, muitas vezes, usamos sem compreender o seu significado e as exigências que implica. 

O termo cultura evoca, antes de mais, o acto de cultivar, tendo no cultivo da terra a forma mais elementar. O ser humano não é simplesmente um elemento da natureza mas é um sujeito que se relaciona com a natureza cultivando-a, com o recurso à técnica, para poder habitá-la e, eventualmente, a tornar mais humana. Evidentemente que pode abusar dela até à destruição mas foi-lhe oferecida para lhe proporcionar felicidade.

O ser humano é, naturalmente, cultural, exercendo o cultivo de si e o cultivo da comunidade. Tudo começa por si mesmo. Os filhos nascem incompletos e necessitados de intervenção. Cada sujeito necessita de um longo trabalho de crescimento. Existe, por isso, uma cultura pessoal que equivale ao modo como se vai constituindo uma identidade pessoal, única e irrepetível. Cada um tem o seu modo de ser e estar com visões concretas sobre o mundo, com hábitos e modos de agir muito característicos. Trata-se de uma identidade em permanente construção, num trabalho inacabado de desenvolvimento das suas capacidades. Esta é a primeira actividade cultural que cada um deve interpretar. Sem este processo de maturação pessoal, o ser humano ficará sempre inacabado e, como tal, esta acção de cultivar-se deve ser desenvolvida até à morte.

Mas não tenhamos a ilusão de que cada um constrói a sua identidade apenas por si mesmo. Cultivar-se a si mesmo acontece sempre num contexto em que os outros cuidam de nós desde os primeiros tempos de vida. Ao mesmo tempo, nós colaboramos no cultivo da identidade dos outros.  

Esta permuta de influência origina o que podemos chamar de cultura comunitária, de um grupo, de uma aldeia, de uma cidade, de um povo. O modo como as pessoas na comunidade se cultivam reciprocamente dá origem a estilos de vida que os distinguem de outros, permitindo ou não, estabelecer uma cultura global, planetária.

Neste processo cultural entram formas de interagir com elementos que se exteriorizam e organizam em formas de ser e estar que se transmitem de geração em geração, como constitutivo das pessoas e das sociedades. Aparecem, assim, várias instituições na comunidade com as suas regras, com as suas produções populares e artistas, celebrações, festas. Nasce um estilo que configura e constitui a identidade de um povo que resulta de uma atitude de cultivo permanente, vivo e sempre activo. A cultura não é, deste modo, algo de estático e inacabado mas exige permanente transformação e elaboração desenvolvendo as sementes que o tempo foi semeando. Tem uma história para ter futuro.  Alhear-se de um passado significa a destruição de uma identidade própria e diferenciadora. Quando se pensa que a cultura moderna está a nivelar tudo, relativizando uma história para querer, acrítica e irresponsavelmente, entrar numa globalização unificadora, perde-se a riqueza de um povo com história e memória, deixando de ser o que verdadeiramente é. Este é o verdadeiro desafio: não perder a nossa cultura. Se cultura tem a sua raiz numa atitude de cultivo, pessoal e comunitário, que mostra uma maneira de ser, para a concretizar poderemos falar muitas culturas. Temos a nossa história e identidade que ninguém nos poderá roubar, mas teremos de estar atentos para que isso não aconteça. Ela vivencia-se em experiências diversificadas, todas importantíssimas. 

O Papa Francisco habituou-nos a um conjunto de referências, todas elas compreensivas se entendidas à luz desta obrigação de cultivar-se a partir de uma cultura comunitária que também deve ser desenvolvida. Para este Dia Mundial da Paz sublinha uma cultura do cuidado. Àquilo que é a nossa cultura teremos de lhe dar esta nova importância. Cultura do cuidado é o contrário de uma cultura da indiferença e, por isso, todas as outras realizações culturais, pessoais e comunitárias, terão de dar corpo visível, audível, sensível, a essa cultura do cuidado. Trabalhando-a estamos a dar conteúdo à nossa cultura, tornando-a mais rica e abrangente. Cuidar do cuidado é, assim, um acto cultural.

Para isso, o Papa Francisco diz que os cristãos, mas também as outras comunidades religiosas e civis, a nível local, nacional e mundial deveriam olhar para o precioso património dos princípios da doutrina social da Igreja que o Papa considera como “gramática” do cuidado. São eles: o cuidado como promoção da dignidade dos direitos das pessoas, o cuidado através da solidariedade com os pobres e indefesos, o cuidado da solicitude pelo bem comum e o cuidado da salvaguarda da criação. 

Estes quatro princípios, considerados pelo Papa, pilares da cultura do cuidado devem ser pensados e reflectidos para serem realizados por nós católicos e por todos quantos exercem cargos na sociedade. Dar corpo a cada um deles, nas leis e no exercício do poder, permitirá que a paz, não como mera ausência de guerra mas como harmonia realizadora das pessoas, nos acompanhe nestes ano perante a pandemia e todas as outras adversidades que possam surgir. Trata-se de uma verdadeira cultura que pode dar um rumo novo à sociedade. 

Sabemos que persistem conflitos bélicos com recurso a armas destrutivas a provocarem destruição e crises humanitários. Não os podemos ignorar e devemos elevar a voz contra tantos genocídios com consequências nefastas para inocentes desde crianças a idosos. Teremos, mais ainda, de aceitar um compromisso tornando-nos realizadores duma paz ativa no mundo onde vivemos. Suscitar esta cultura do cuidado na atenção a nós próprios, aos outros, à sociedade onde estamos integrados, deverá tornar-se um programa quotidiano para que a paz se construa. Ao mesmo tempo, em responsabilidade democrática, deveremos exigir que os governos, a nível local ou nacional, protagonizem esta mesma cultura prestando atenção aos mesmos princípios, da dignidade e dos direitos das pessoas, do bem comum, da solidariedade, cuidado e salvaguarda do criado. A paz não significa só ausência de guerra. Ela existirá, no seu significado mais global, quando todas as pessoas possam experimentar dignidade, tranquilidade, serenidade porque todos os seus direitos estão a ser respeitados. Esta boa harmonia e concordância, resultante da aceitação e respeito das diferenças, tem de ser cuidada persistentemente por todos e cada um, com um suporte e estímulo por parte de quem governa. 

Procurando suscitar compromissos concretos com a causa da paz, enumero três alusões muito concretas.

Nesta responsabilidade de construir positivamente a paz, neste dia em que Portugal assume a presidência do Conselho da União Europeia olho para o velho continente e recordo o sonho de construir uma “casa comum” para todos os europeus. Aqui continuam a existir muitos isolamentos sociais e manchas de pobreza e desigualdade, marginalização de migrantes, precaridade habitacional, avidez de possuir a natureza destruindo energias retemperadoras para o bem estar de todos. Um teólogo meu amigo afirmou quanto eu gostaria de referir neste contexto que é responsabilizante para Portugal, “Os interesses locais emergem, impondo-se acima de toda a lógica de solidariedade. Falta uma alma comum, uma identidade partilhada, um impulso de generosidade generalizada, que permitam alimentar sonhos e projetos de longo alcance para o bem comum. Unida, pelo menos de forma nominal, na frente económica, a Europa não o está na condução de um programa político unitário, de longo alcance, tornando-se assim incapaz de dar as respostas certas no momento certo e correndo o risco de perder o comboio da História” (Bruno Forte). 

Neste Dia Mundial da Paz não posso esquecer, também, a situação que se vive na Província de Cabo Delgado, em Moçambique. A Arquidiocese de Braga tem um protocolo de colaboração com a Diocese de Pemba onde há cerca de três anos existe uma situação de guerra que já fez mais de dois mil mortos e 500 mil deslocados. Temos dado o nosso contributo através do nosso Centro Missionário que permanentemente vai enviando dinheiro e géneros. Continuará a fazê-lo contando com a generosidade de todos. Mas importa que Portugal se comprometa com a paz, nessa antiga colónia. A União Europeia já abordou o assunto por diversas vezes. Importa agir e não adiar uma intervenção ponderada que restitua a tranquilidade aquelas populações. O Bispo D. Luís, a quem o Santo Padre expressou a sua solidariedade e ajuda económica, é muito claro. Diz ele: “Mais de um milhão de pessoas deslocadas precisam de tudo: de alimento, roupa, medicamentos, janelas. Precisam de atenção e de um lugar para morar”. Sim, esta guerra tem adiado os sonhos de muita gente. O povo está cansado. Anseia pela paz. Espera e agradece a solidariedade mundial, testemunham os leigos e sacerdotes que temos enviado para esta região.

Um novo ano, muitas interrogações e dúvidas. São muitas as incertezas. Importa, porém, que o iniciemos com um projecto: “promover a cultura do cuidado como percurso de paz”. A paz ao longe e a paz ao perto. Cultivemos o cuidado, promovendo iniciativas nas nossas vidas e nas nossas comunidades. Dêmos qualidade à nossa vida no sentido material e espiritual, fixemos o nosso olhar nos outros abatendo a indiferença, cuidemos, particularmente, os indefesos e pobres, não deixemos de prestar atenção à natureza que muitas teimam em destruir mas que também nós com as desatenções quotidianas o fazemos. O Santo Padre deixa-nos um programa audaz para este novo ano. A pandemia obrigou-nos a olhar parta os outros. Não foi só para nos defendermos. A vida de cada um depende do cuidado da nossa vida e dos outros. Cultivemos gestos que denotem uma identidade da nossa cultura comunitária do povo português e bracarense habituado a crescer em proximidade e atenção aos outros. Mostremos que a cultura não está só no exterior com iniciativas de alguns, através de eventos a envolver multidões. O importante da aventura cultural acontece dentro de cada um pelo desenvolvimento dos projectos pessoais e fora no compromisso com a causa humana para conviver com todos na casa comum que nos acolhe. A cultura do cuidado é, verdadeiramente, uma cultura de povo que já tem muitas expressões, mas deve ter ainda muitos mais.

Se aceitarmos e desejamos uma cultura societária, trabalhemos esta cultura pessoal e única capaz de dar um rosto novo à sociedade. Não à indiferença nem egoísmos. Sim a delicadeza e atenção esmerada e quotidiana a quem caminha connosco nesta história comum a construir por todos.

Exijamos que as autoridades que nos governam cumpram os princípios da dignidade de todos, da solidariedade, do bem comum, de cuidar do criado. Mas não fiquemos em palavras.

Que Santa Maria, a Mãe de Deus e nossa Mãe nos auxilie neste projecto e nos dê força e coragem para a cumprir.

 

† Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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