Arquidiocese de Braga -

2 abril 2015

Sempre de toalha cingida

Fotografia

Homilia na Quinta-feira Santa, na Sé Catedral, às 16h do dia 02 de Abril de 2015

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Hugo Delgado / WAPA

Foi minha intenção, com a mensagem da Quaresma que dirigi a toda a Arquidiocese, sublinhar algumas intuições recentes do Santo Padre. Recordei que a grande doença da sociedade moderna é a indiferença e a insensibilidade, não apenas no sentido religioso, mas sobretudo no âmbito social.

Os meios de comunicação social informam-nos diariamente sobre o estado do país e sobre a realidade do mundo. Mas, curiosamente, não sabemos o que se passa ao nosso lado, no nosso bairro, no nosso prédio. Sabemos o nome das personalidades públicas, mas desconhecemos o nome do vizinho, ao lado do qual moramos há 10 anos. O século XXI parece ser o tempo das vidas paralelas. E este caminho da iliteracia emocional, desta insensibilidade, atingiu hoje patamares chocantes.

A sociedade vive tão absorvida pelos seus afazeres que, com facilidade, se esquece que a vida deve ser gozada em plenitude. Corre-se sem saber bem para onde e não há tempo para criar proximidade nem detectar necessidades evidentes ou problemas ocultos. Ficamos preocupados com o aumento dos casos de depressão. Interrogamo-nos até como é possível tal acontecer a pessoas que, humanamente falando, têm tudo ao seu dispor. Outras vezes alarmamo-nos com os suicídios ou mesmo homicídios que tingem de negro a sociedade. São, por isso, elucidativas as palavras do Papa Francisco: “Hoje a atitude egoísta da indiferença atingiu uma dimensão mundial tal que podemos falar de globalização da indiferença”.

Nesta celebração do amor, quero recordar duas Obras de Misericórdia: 1. Dar de comer a quem tem fome; 2. Dar bons conselhos.

Felizmente, indiferentes é algo que não conseguimos ser perante a bela liturgia desta Quinta-feira Santa. Graças a ela sentimos a alegria do encontro de Cristo com os seus discípulos na sala do Cenáculo, apesar das dificuldades que se previam. Com enorme lucidez, Jesus intuiu as necessidades dos Apóstolos, realizou gestos pedagógicos e deu-lhes um bom conselho: “dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13, 15). Dar bons conselhos, para Jesus, não consistiu num discurso moralista de reprimenda ou de condenação. Sabia que os Apóstolos necessitavam de sentir o seu amor num gesto que não compreenderiam mas que deveriam viver.

Já o livro de Ben-Sirá nos avisava. “Diante de um conselheiro, põe-te alerta; vê primeiro quais são os seus interesses” (Sir 37, 8). Infelizmente não faltam conselheiros com interesses ocultos. Aconselhar é uma arte sapiencial que exige uma humildade incomensurável. Nenhum conselheiro é omnisciente e domina todas os contornos da realidade. Requer-se, por conseguinte, um olhar arguto e ponderado; uma análise séria da realidade e da situação existencial do aconselhado para, depois, propor caminhos acertados.

Talvez o mundo necessite de ouvir com humildade um bom conselho do Papa Francisco. “Desejo que os lugares onde a Igreja se manifesta, particularmente as nossas paróquias e as nossas comunidades, se tornem ilhas de misericórdia no meio do mar da indiferença”. O que são as ilhas de misericórdia? De um modo muito simples, é o amor humano na sua visibilidade e realismo, afectivo e efectivo, verdadeiramente operativo e transformador das realidades humanas, como recordava o Sumo Pontífice na sua Mensagem Quaresmal.

Outra ilha de caridade é a obra de misericórdia “dar de comer a quem tem fome”. A fome hoje tem diversos nomes e está patente aos olhos de todos. É o escândalo do século XXI e não pode ser tolerado. Ao celebrarmos o dom da Eucaristia, necessitamos que o pão seja repartido a partir do altar. Acolhemo-lo sacramentalmente e fazemos com que no relacionamento com as pessoas Ele continue a ser repartido com generosidade e verdadeiro conhecimento das situações.

Mas quem poderá constituir-se como um agente deste itinerário específico e embaixador destas obras de misericórdia? Gostaria de atribuir esta responsabilidade, particularmente em Ano da Vida Consagrada, aos Religiosos Consagrados. Todos nos recordamos como, no passado, era frequente que as pessoas recorressem aos conventos, de freiras e de frades, para pedirem conselhos ou ajuda em momentos de aflição. A porta dos conventos era a  “porta aberta da consolação”. Não estou em condições de afirmar até que ponto este cenário acontece nos nossos dias. Sei, todavia, que o potencial é imenso e muito se poderá fazer.

A disponibilidade para edificar o reino deve fazer-se carne nestas atitudes de acolhimento, de aconselhamento e de dar de comer a quem necessita. Não basta, porém, que cada convento tenha os seus pobres ou as pessoas a quem respondem a dúvidas. O tempo actual exige uma resposta mais abrangente e articulada com as paróquias e com as dioceses. Só assim o testemunho será eloquente.

A fome não permite desculpas. Hoje, mais do que nunca, teremos de apostar numa reflexão séria sobras as suas causas. Urge lançar as bases de um mundo fraterno onde cada um luta e trabalha para ter uma vida digna, sempre com o braço amigo de uma Igreja diocesana solícita e atenta. Trabalhemos de mãos dadas.

Em Quinta-feira Santa, perante o mandato do Senhor de nos amarmos como Ele nos amou, e com o Seu exemplo de querer continuar a lavar os pés, deixo a responsabilidade de construirmos uma Igreja que dá de comer a quem tem fome, reconhecendo que a fome também pode estar nas dúvidas ou nas interrogações. Não esqueçamos que dar bons conselhos tem uma dupla vertente. Em primeiro lugar, ser capaz de perguntar nos momentos de perplexidade é uma atitude tipicamente cristã. Há por aí tanto orgulho estampado no rosto de quem sabe tudo e caminha para o precipício. Depois, ir ao encontro dos duvidosos, não para impor respostas mas para ouvir silenciosamente, é o modo de viver a fé neste tempo de aflições e interrogações. Que o amor cristão nos inspire a tal e nos leve a andar de toalha na cintura para distribuir pão aos famintos e limpar as lágrimas de tantos tristes.

+ Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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