Arquidiocese de Braga -

31 outubro 2021

O Santinho do Povo

Fotografia Avelino Lima / DM

Homilia na inauguração da estátua de Frei João de Neiva.

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Queremos evocar a figura de Frei João de Neiva, Carmelita Descalço, nascido em S. Romão de Neiva, Viana do Castelo, mas que ficou na história de Braga, evocado e recordado até há bem poucos anos e ainda hoje invocado por alguns com o nome de Fradinho do Carmo.

São passados quase 160 anos da sua morte e queremos recordar quem na profissão religiosa ficou com o nome Frei João da Ascensão. Vários nomes, mas a mesma pessoa com marcas de vida em Viana do Castelo e sobretudo em Braga.

Quando as ordens religiosas foram extintas, em Portugal, em 1834, encontrava-se em Lisboa. Os religiosos tiveram de abandonar os conventos e muitos emigraram. Estavam proibidos de usar o hábito que os identificava e tiveram de encontrar guarida em muitos e diversificados lugares. Fr. João também não podia usar o hábito. Insistindo, acabou por ir para a cadeia, de onde saiu em 1839. Veio  então para Braga onde foi acolhido em casa de amigos, nomeadamente o Cón. José Oliveira e Silva e, mais tarde, em casa de outros amigos. Proibido de exercer o seu ministério sacerdotal, não o fez mas dedicou-se particularmente ao atendimento espiritual de quem a ele recorria e, particularmente, ia repartindo bens pelos pobres da cidade que a ele recorriam com várias necessidades. A profundidade espiritual da sua vida cedo lhe granjeou o nome de Santo, a quem se atribuíam muitos milagres.

Particularmente significativa era a atenção aos pobres, a quem dava o que tinha e o que não tinha. Todos recorriam a ele e nele encontravam conforto espiritual e material.

É nesta perspectiva que o quero recordar. Ficando num passeio da nossa cidade uma imagem emblemática, gostaria que ela se tornasse apelo para a vivência da caridade no encontro com as diferentes fórmulas de pobreza que encontramos na cidade. Parece que estamos numa cidade evoluída e com tudo o que é indispensável. Por detrás de rostos que parecem tranquilos emergem muitas inquietações e interrogações. Sabemos que ainda temos fenómenos de pobreza material. Não os podemos ignorar. Mas há muito mais pobreza nesta cidade que se diz acolhedora de todos. Na aparência parece uma coisa mas por dentro é totalmente diferente. Passar por aqui deveria significar o compromisso de escutar corações amargurados e procurar ter tempo para eles. O Frei João dedicou muito tempo ao atendimento. Hoje precisamos de fazer o que o Papa Francisco sintetiza como “gastar tempo”. Parece que se perde tempo mas estamos a enriquecer-nos com tudo o que o amor pode dar. Se fôssemos capazes de perder tempo uns com os outros, muitos problemas nunca existiriam ou seriam ultrapassadas. Lugar importante hoje para que isto aconteça é a família. Aí não se perde tempo uns com outros. Liga-se a aparelhos e perde-se alegria de estar juntos. Como seria bom que se reconhecesse que aqui está alguém que perdeu tempo pelos outros para dar tranquilidade e alegria.

Parecendo um homem parado a ouvir as pessoas que a ele recorriam, tornou-se um peregrino para encontrar bens para os pobres. Não sendo dotado de bens, batia à porta de conhecidos e desconhecidos e percorria os lugares mais lúgubres da nossa cidade para colocar o amor na linha dos gestos e não das teorias. O amor passava pelas suas mãos como transparência do amor que Deus queria oferecer. Amado por todos os bracarenses, mas foram os pobres e os abandonados quem chorarem de um modo particular a sua morte. 

Para mim a sua estátua ficará a dizer à cidade de Braga, gostaria que fosse para todos mas sobretudo aos católicos, que só o amor permanece e que nesta época de viragem teremos de nos comprometer num estilo de vida não só solidário quanto fraterno.

Na cidade de Braga ninguém deveria ignorar, por isso é bom que esta imagem fique na rua, que a Arquidiocese de Braga acolheu a figura do Bom samaritano como paradigma para as comunidades e cristãos. Não se trata da imagem de um santo, como muito poderão imaginar. Não é uma pintura mais ou menos impressionista. O nosso programa pastoral diz que “a grande tradição da hermenêutica patrística vê no Bom Samaritano uma figura de Jesus Cristo que se aproxima da humanidade ferida, abandonada e deixada meia morta na beira do caminho”.

É esta a grande lição a extrair da vida do Fradinho do Carmo que viveu há 160 anos e que hoje deveria ser necessário repetir os seus gestos. É Cristo que, como Samaritano, vai cuidando, procurando ver, interrogando-se sobre o que poderá fazer, discernindo experiências de grupo e inculcando um ambiente de verdadeira participação para juntos irmos às raízes dos problemas. Não é fácil tomar consciência sobre o que importa fazer. Acredito que juntos conseguiremos aproximar razões e delinear estratégias. Há pobreza nas casas mas também há nas ruas e esta imagem vai suscitar algumas críticas sobre a sua concepção mas deveria provocar unanimidade no afirmar e reconhecer que há muito para fazer em Braga em favor dos pobres. Já não será um Frei João de Neiva. É muito pouco. Sozinho não faz nada. Só solidariamente o conseguiremos fazer.

Isto é trabalho para todos, católicos e não católicos. Temos, porém, a coincidência de hoje se dar início à Semana dos Seminários. Creio poder afirmar que Braga não conhece os Seminários naquilo que são, no que foram e no que deverão ser. Estão a celebrar 450 anos de existência. Braga deveria tributar-lhe gratidão. Por lá passaram alguns que vieram a ser sacerdotes mas muitos mais que se enriqueceram para servir a sociedade. Há tanta gente que é o que é graças aos Seminários. Importa que lhes testemunhem gratidão.

Esta sociedade mais igual e solidária deve ser pregada e construída. Para isso vivem os sacerdotes. O culto é só uma parte do seu ministério. Gastam-se por proclamar modelos de comportamentos que comprometem na eliminação das causas da pobreza. Daí que este dia também deveria ser um convite a quem acredita que o mundo pode ser diferente mas que só acontecerá com homens de entrega e doação à causa do bem comum. É este o perfil de um seminarista e Braga não pode ser apenas um lugar com muitos padres e com alguns seminaristas a percorrerem as suas ruas. Necessita da generosidade e coragem de muitos jovens. Ao lado do Fradinho do Carmo gostaria de bater à porta de muitos jovens para que viessem experimentar a alegria de seguir Jesus para prosseguir a sua missão. Precisamos de reagir a este mundo de egoísmo e superficialidade. Há causas que merecem a entrega da vida.

A quantos quiserem participar nesta eucaristia e que irão levar consigo a necessidade de ouvir os gritos do mundo para gastar tempo com eles e encontrar soluções, quero testemunhar a minha gratidão. Que de verdade levem o exemplo de quem não se resignou a um mundo de injustiças.

A quem permitiu a concretização deste momento e a sua colocação no percurso de uma rua da cidade, a gratidão da Arquidiocese de Braga. Que nos ajudem a gostar dos pobres, não pela sua existência mas porque existem, que nos ajudem a ter meios para eliminar o que alguns consideram inevitável. Eu quero crer que enquanto tivermos um pobre nas ruas das nossas cidades não podemos estar tranquilos. Temos capacidade para eliminar esta chaga. Assim nós queiramos. Ousemos ser mais proativos e, particularmente, mais objectivos e eficazes.

Houve um tempo em que o povo chamava a Frei João o Santinho do Povo. Passados os 160 anos pode ser o momento ideal para promover a devoção, recorrendo a ele solicitando graças e anotar tudo o que possa mostrar um carácter extraordinário e inexplicável. A Arquidiocese, juntamente com a Ordem do Carmo, recuperará a causa de modo a que na honra dos altares se torne referência de vida. Que Deus nos inspire neste caminho.

Dêmos graças a Deus pelo Fradinho do Povo. Levemos connosco o desejo de que outros o queiram imitar. Obrigado à Ordem do Carmo por ter querido recuperar uma figura histórica, simples, mas de grande valor humano e espiritual.

 

 † Jorge Ortiga, Arcebispo Primaz


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Homilia