Arquidiocese de Braga -

27 dezembro 2023

Opinião

Passagem de testemunho

Carla Rodrigues

Entre festejos, despedidas, brilhos e contagens decrescentes, o ano de 2023 dá os últimos passos em direcção à meta, que se encontra cada vez mais próxima, qual corrida de estafetas que se prepara para passar o testemunho a um novo ano. Se a transmissão da estafeta for bem executada, quem a recebe não tem de olhar para trás. E é também isto que precisamos na mudança de ano: que a passagem de testemunho seja bem-feita, para não ficarmos agarrados às pontas soltas do passado que nos impede de ver o caminho que se abre à nossa frente, que não nos permite reconhecer as pessoas boas que nos rodeiam e que nos torna indiferentes às coisas belas e mágicas que vão acontecendo.

Na passagem de testemunho, impõe-se falar de pobreza, de mendicidade, de milhares de sem abrigos que povoam ruas e cidade pelo mundo fora. Todos os anos, na época natalícia, somos mais solidários, mais empáticos e mais generosos para com as pessoas que vivem despejadas na rua. Nesta época é sempre mais fácil vestir a pele do outro, calçar os seus sapatos, percorrer o seu caminho, observar as suas escolhas (boas ou más) e ser menos juiz e carrasco. Habituamo-nos a ser expectadores da mendicidade, a ver mãos estendidas, cobertores e caixotes encostados aos edifícios, pessoas com frio, sozinhas e a dormir ao relento. Habituamo-nos a vê-las e a tratá-las como marginais, pessoas sem valor para a sociedade, responsabilizando-os pela situação em que vivem, condenando-os por viverem na rua, por serem pobres, por não serem mais fortes que o vício do álcool ou das drogas, denominador comum à maioria dos sem-abrigos. 

 Pessoas a viverem nas ruas (e das ruas) são uma realidade visível e gritante pelo mundo fora. Tropeçamos na pobreza, esbarramos no sofrimento, atropelamos a fome, desviamos o olhar quando o cenário é cruel ou quando o quadro humano não é bonito de ser visto. Os processos de reintegração são difíceis, muitas vezes impossíveis, porque vêm associados a anos de rua, a adições e dependências, a problemas de saúde mental, à marginalização a que se habituam, às ruas que se lhes entranharam na alma impedindo-os de reunir forças para dar impulso e acreditar numa nova vida, para agarrar e percorrer, ainda que lentamente, novos caminhos. Sair da rua não é fácil, mas deixar a rua sair de dentro de si será sempre um dos trabalhos mais difíceis e que se depara com mais obstáculos. 

Passear pelas ruas mais movimentadas das capitais europeias é perceber que há todo um dormitório a céu aberto. Cobertores, caixotes, casacos grossos, sacos com roupas, tudo fica encostado às paredes dos prédios durante o dia, prontos para serem dispostos pelo chão. É difícil ver famílias inteiras a dormirem nos passeios. Crianças, adultos, idosos. Saudáveis, doentes. São muitas as pessoas sem um tecto, sem uma cama, sem uma mesa para fazerem as refeições, sem um abrigo. São cada vez mais as famílias a viverem nas ruas, ao frio, à chuva, tendo a lua por companhia. 

Temos de recomeçar, “sem angústia e sem pressas”, nesta passagem de testemunho.