Arquidiocese de Braga -
13 outubro 2025
«A pobreza tem hoje um retrato diferente do que tinha há uns anos atrás»

DM - Rita Cunha
Ana Santos assumiu em agosto o cargo de presidente da Cáritas Arquidiocesana de Braga, mas há já quatro anos que faz parte do projeto. Sentiu que precisava de «fazer algo mais» pelos outros e também por si. Os desafios são muitos e garante estar preparada para os enfrentar com a sua equipa.
Diário do Minho (DM) Assumiu o cargo de presidente da Cáritas Arquidiocesana de Braga a 19 de agosto. O que a motivou a abraçar esta causa e quais os principais objetivos para este mandato?
Ana Santos (AS) – Vamos começar pelas motivações. Eu já venho com um trabalho feito na Cáritas desde há quatro anos, como secretária da direção, em que auxiliava o presidente e a vice-presidente. E esta foi a primeira vez que, efetivamente, entrei em contacto com a Cáritas, apesar de conhecer a instituição, mas mais por fora. Quando abracei este projeto há quatro anos foi porque fazia sentido na minha vida e sentia que precisava de fazer algo mais, eu digo que pelos outros mas talvez fosse por mim. Porque ao fazermos algo pelos outros acabamos por ter retorno e temos esta satisfação pessoal.
Sabíamos que o mandato ia terminar porque é de quatro anos. Eu afirmei desde logo que gostava muito de continuar, mas longe de mim achar que iria continuar como presidente da Direção. E porquê? Porque, por um lado, quatro anos é muito pouco tempo. Passam a voar. Depois, a partir do momento em que somos uma direção voluntária, não estamos cá todos os dias. Tento estar presente através das novas tecnologias e as várias plataformas partilhadas que nós utilizamos ajudam-me a acompanhar a Cáritas diariamente, mesmo não estando cá. Mas, efetivamente, senti que ainda havia muito trabalho para fazer.
Quando o meu nome é sugerido e se efetiva o convite, aí é que vem a minha tomada de consciência. Isto é algo enorme por tudo o que abraça e por tudo o que representa. Não me assusta, mas é altamente desafiante. O que também ‘casa’ com a minha forma de ser porque eu gosto de sentir o desafio e a adrenalina, de me colocar à prova.
Por isso, não tive coragem de dizer que não. Identifico-me com a Cáritas. Identifico-me ainda mais com as pessoas que estão na Cáritas. Elas merecem tudo o que há de melhor no mundo e vou fazer por ser o que elas esperam. Se os outros acreditam em mim é porque me reconhecem competências e caraterísticas para eu levar isto avante. E eu não estou sozinha. Tenho uma equipa escolhida por mim e também a pensar em tudo aquilo que precisa de mudar na Cáritas, em todos os desafios que enfrenta e enfrentará.
DM – Referiu que há coisas a mudar na Cáritas de Braga. Que coisas são essas?
AS – Há grandes desafios. A dada altura a instituição teve um crescimento muito rápido, crescimento esse que não deu tempo suficiente para que, em termos de liderança, de sistema de governança e de equipas, houvesse uma adaptação saudável. Isto quer dizer que sentimos que as equipas trabalham, mas poderiam trabalhar ainda melhor. E precisa de haver aqui – e já por isso é que nós também temos vindo a trabalhar nesta definição de governança – o que será melhor para a Cáritas. Porque além de termos vários serviços de apoio, estamos também situados em infraestruturas, em espaços diferentes, o que dificulta por si só a gestão técnica. Por isso, a ideia é, apesar de as pessoas estarem fora, sentirem que estão todas no mesmo edifício. No fundo, tentar reduzir esta distância que é sentida pelas pessoas.
E nós temos vindo a fazer um trabalho de auscultação muito grande para perceber, em termos de liderança, de comunicação e de plano estratégico, o que é que nós precisamos fazer para melhorar. A Cáritas cresceu, mas o resto não. E nós não podemos trabalhar da mesma forma que trabalhávamos há 20 anos. Primeiro, porque as urgências e emergências são diferentes. As causas sociais são muito mais complexas, exigem muito mais das pessoas. E como o crescimento foi tão rápido, não houve tempo para preparar. E às vezes sentimos que andamos um bocadinho atrás do prejuízo. Isto é altamente desgastante para a equipa.
DM – Em que consiste esse plano estratégico?
AS – A ideia é termos um planeamento muito bem feito, porque quanto mais planeados estivermos, melhor capacidade temos para responder àquilo que surge no dia a dia que nós não estamos a contar. Eu diria que é diário, mas é a cada hora. Temos alturas do ano em que vem tudo ao mesmo tempo.
Basta pensarmos nos fluxos migratórios. Quando vem um grande fluxo migratório que ninguém está a contar, vêm bater à porta da Cáritas. E nós, se estivermos planeados com o que estamos a fazer diariamente, estamos melhor preparados para receber essas urgências.
DM – Quais são os principais desafios, neste momento, para a Cáritas?
AS – Quando defini o plano estratégico para estes quatro anos, centrei-me em seis pilares essenciais. Apesar da correria do dia a dia, nunca podemos perder a nossa fidelidade à missão Cáritas, mantendo sempre o olhar da Igreja a Jesus Cristo.
Somos a caridade, somos o rosto, a mão da caridade da Igreja. Por isso, não podemos perder o olhar fixo nas pessoas que nos são confiadas. Nós somos muito motivados pela ação que parte da doutrina social e por todos os valores que a doutrina social da Igreja tem e do desenvolvimento humano integral. Por isso, é pegarmos nestes princípios orientadores, colocá-los em ação e termos sempre presente a dignidade da pessoa humana, o bem comum, a solidariedade, a subsidiaridade.
Claro que pensarmos em trabalhar em todas as dimensões da pessoa humana, material, social, cultural, espiritual e moral, aqui é que estão os grandes desafios. E trabalhar para que haja uma justiça social, a redução das desigualdades, o respeito pelos direitos humanos, pegarmos nos princípios orientadores da doutrina social da Igreja e colocá-los aqui em prática em todas as áreas que dizem respeito.
Um outro valor, e que nós sabemos que é um desafio, é a valorização das pessoas e das equipa, fruto deste crescimento repentino que tivemos. É preciso definir o plano anual de formação, estarmos atentos ao bem-estar das pessoas, aos processos de escuta.
Um outro pilar é o da proximidade e o estarmos atentos às novas condições de pobreza, como a solidão, a saúde mental, violência doméstica, os sem-abrigo e os fluxos migratórios. Temos projetos descentralizados e parcerias locais nesse sentido.
Um outro pilar é o da inovação, para responder aos desafios de hoje, mas sem perdermos as nossas raízes. No nosso plano estratégico temos uma proposta ambiciosa, que é a criação de um gabinete de inovação social e sustentabilidade.
Um quinto pilar é termos uma incidência da nossa presença pública e do nosso trabalho em rede. Nós já trabalhamos em rede, com a Cáritas Nacional e com a Cáritas Internacional. Temos uma participação ativa também em fóruns cívicos, mas queremos ter ainda mais.
O sexto pilar é a espiritualidade enraizada para que todas as nossas ações sejam fruto de discernimento e oração.
DM – Em termos de atendimentos, já são conhecidos números relativamente a este ano?
AS – No nosso espaço Igual, no primeiro semestre tivemos 1517 atendimentos. Destes atendimentos, refiro-me a 110 crianças e jovens vítimas de violência doméstica que estão acompanhados ainda. No espaço Igual também, de 1010 atendimentos, acompanhamos 122 pessoas adultas, em que 42 destes casos são novos. Outros que já vínhamos acompanhando.
No nosso centro de acolhimento de emergência a vítimas de violência doméstica, nós acolhemos 122 pessoas (62 são menores acompanhantes). Relativamente à nossa cantina social, de janeiro a junho servimos 14.508 refeições, o que é muito.
Relativamente aos apartamentos para pessoas em situação de sem-abrigo, nós acolhemos, atualmente, 12 cidadãos. E na nossa estrutura de acolhimento temporário, acolhemos 43 cidadãos, mais 10 do que o mesmo período no ano passado.
Quanto ao nosso projeto INCORPORA, de colocação profissional de pessoas em situação vulnerável, temos 18 casos de sucesso neste semestre. O que é uma grande vitória.
DM – Estes dados indicam que a Cáritas é procurada por cada vez mais pessoas, em linha com o que se passa a nível nacional...
AS – Sim. Somos procurados cada vez mais por mais pessoas, por mais agregados, por motivos diversos, até porque são as novas formas de pobreza que existem. A pobreza hoje em dia tem um retrato diferente daquilo que era há uns anos. A pessoa cria a imagem de que o pobre é alguém que vem porque está mal vestido. Está na rua a pedir. E não é nada disso. Há também a pobreza espiritual. Nos atendimentos que fazemos não alimentamos só a barriga mas também a alma, através de aconselhamento psicológico.
DM – Que tipo de situações vos surgem? A chegada de pessoas de outros países tem contribuído para um aumento da procura?
AS – São variadas as situações. E, ao contrário do que se possa pensar, a maioria dos pedidos vem de portugueses. Mas claro que os fluxos migratórios têm impacto, as pessoas vêm para o nosso país à procura de melhores condições e, muitas das vezes, é-lhes vendido um sonho que não existe e vêm completamente enganadas. Ou para um trabalho que não existe ou cuja remuneração não corresponde às necessidades. E aqui basta falarmos de habitação. Até podem ter dinheiro para pagar uma casa, mas não têm como alimentar os filhos, comprar material escolar ou medicamentos. Essas pessoas não vivem, sobrevivem. A única diferença, cá e lá, é o país. E depois não há como voltar atrás. Isto é o que afeta a maioria dos que vêm de fora e nos pedem ajuda.
DM – O Estado poderia ter aqui um papel mais de prevenção, evitando ter de “correr sempre atrás do prejuízo”?
AS – Estas situações, não prevenidas, acabam por trazer mais problemas ao país, desde depressões a casos de dependências de álcool ou drogas. Temos assistido a políticas de remediação. E depois vêm apoios mas que acabam por ser remedeios e que não acabam por solucionar os problemas das pessoas. São “balões de oxigénio” que resolvem a questão no momento, mas não a longo prazo.
Na Cáritas fazemos um trabalho de averiguação para perceber porque é que, efetivamente, a pessoa está naquela situação. Não é só dar um cabaz de alimentos ou dar cupões para a pessoa gastar no supermercado se ela não sabe o que comprar. É perceber se a pessoa tem literacia financeira e dar formação nesse sentido, perceber as competências que tem e ajudar a encontrar emprego, apoiar a nível emocional. Ou seja, temos de trabalhar o problema como um todo e, por isso, fazemos uma interligação entre os projetos que temos. Porque cada pessoa é uma pessoa e cada caso é um caso.
DM – Existe muita pobreza escondida?
AS – Sim. Há muitas pessoas que precisam, mas que não procuram ajuda porque existe a vergonha social. Ninguém gosta de dizer que está numa situação vulnerável e temos muitos casos desses. Mas a verdade é que isto pode tocar a qualquer um de nós. Aqui não há julgamentos. Atendemos cada pessoa como um ser individual e, perante o que nos apresenta, tentamos ajudar.
DM – O perfil daqueles que vos procuram tem-se vindo a alterar?
AS – Dependendo da complexidade de pobreza que nós vivemos hoje em dia, o perfil altera-se. E ele é múltiplo, é variável. É difícil dizermos qual é o perfil da pessoa que nos procura. Apenas podemos dizer que não tem nada a ver com a posição social ou financeira, mas sim com a situação que a pessoa está a viver naquele momento. E por isso é que é tão difícil definirmos o tipo de perfil, o que implica termos equipas efetivamente preparadas e formadas. Não há manuais de atendimento, mas deveria de haver tantos quantas as pessoas que nos procuram para sabermos como lidar com um conjunto de sonhos e de fragilidades, às vezes um conjunto de vazios. É altamente desafiante.
DM – A tudo isto juntam-se as barreiras culturais e linguísticas...
AS – Sem dúvida que também é um desafio. Vêm pessoas com hábitos culturais muito diferentes. Vemos isso sobretudo nas nossas casas de acolhimento. Temos pessoas que vivem toda uma outra vida e é preciso respeitar e readaptar, sem se perderem as origens. Mas a barreira linguística ainda é o maior dos nossos desafios, por isso nestas situações começamos logo com a formação do português, até para ajudar na inserção no mercado de trabalho. E eles têm uma vontade muito grande em aprender e estar inseridos na comunidade. Temos vários casos de sucesso, o que é gratificante.
DM – A violência doméstica é um dos temas que está na ordem do dia. A Cáritas de Braga oferece um conjunto de respostas de apoio a vítimas deste crime. O número de casos tem subido, como a nível nacional?
AS – Têm aumentado e a nossa previsão é que aumentem cada vez mais. O que não quer dizer que haja mais casos, mas sim que há mais denúncias. Se calhar antigamente até havia mais casos encobertos, mas não tantas mortes. Atualmente é mais extremo. Acredito que ainda estamos longe de chegar aos números reais, até porque provavelmente todos nós conhecemos um ou outro caso que se pode aproximar da violência doméstica, mas que, por sermos amigos ou conhecidos, vai-se dando uma oportunidade.
Desde 2006 que fazemos atendimento, portanto temos experiência nesta área que é muito complexa.
Infelizmente hoje em dia parece tão fácil acabar com a vida de alguém. É assustador. E é preciso também perceber porque é que isto acontece. Isto carece mesmo de estudos, de investigação. Também não apostamos na prevenção da saúde mental, no combate às adições, às dependências. Não estou a justificar as pessoas porque não há justificação. Mas muitas vezes por trás há uma pessoa que é dependente.
DM – Há cada vez mais casos de violência doméstica no seio juvenil, alguns começam ainda na fase do namoro. É urgente apostar na prevenção junto do público mais jovem?
AS – Sim. Quanto mais cedo nós demonstrarmos às crianças o que é que é certo e o que é que é errado e o que é que se deve fazer e o que é que não se deve fazer. Quanto mais cedo elas tiverem estes conhecimentos, mais fácil será perceberem o que é que se deve e o que é que não se deve fazer.
Nós levamos às escolas estas temáticas para serem trabalhadas na violência do namoro, independentemente da idade das crianças. Claro que depois adaptamos os conteúdos, mas nós fazemos este trabalho, ainda que fique só um bocadinho, mas se nós o fizermos de uma forma contínua, um dia teremos que deixar de o fazer. Alguma coisa eles interiorizam sempre.
DM – A vossa Casa de Acolhimento de Emergência para vítimas de violência doméstica está sempre lotada, estando em vista a construção de uma nova. Em que fase está esse projeto?
AS – A capacidade da nossa casa atual é de 25 e está sempre lotada. Mais vagas tivéssemos, mais vagas estariam ocupadas, infelizmente.
Quanto à nova casa, vai ser lançada a terceira fase do concurso com o valor de um milhão 276 mil euros. Uma parte é comparticipada, mas o restante é pago pela instituição, por isso lançamos a nossa rede de embaixadores e fazemos o convite para as pessoas fazerem parte porque se todos contribuírem um bocadinho, vai dar um todo e é um todo que nós precisamos para que realmente aconteça.
Com esta obra consideramos que vamos ter excelentes condições para fazermos aqui um trabalho de qualidade. O arquiteto fez magia. Não vai aumentar a nossa capacidade, mas melhora muito as nossas condições.
DM – O anterior presidente, o doutor João Nogueira, falou da vontade de criar grupos em todos os Arciprestados. Como vê essa ideia?
AS – Ainda há aqui um caminho que precisamos de fazer que é definir, em termos de estatutos, o que são as Cáritas paroquiais e também em termos de ação. Porque há coisas que se podem fazer e outras que terão de passar obrigatoriamente pela sede porque não é dado nenhum apoio que não seja devidamente fundamentado e estudado. E não é porque não queremos dar, é porque nós queremos ser transparentes. E nós só conseguimos ser transparentes se conseguirmos justificar tudo aquilo que recebemos e todos os apoios que damos. Sempre foi assim que trabalhamos e é assim que queremos continuar a trabalhar. Isto implica formar os grupos paroquiais, que em termos de vontade são dos melhores, porque já o fazem embora que de uma forma não visível. Em todas as paróquias existem grupos paroquiais que dão apoio às pessoas independentemente das suas necessidades ou vulnerabilidades. É preciso fazer bem feito porque nós não nos conseguimos desdobrar como equipa. Em termos de recursos humanos às vezes existe uma limitação.
É mais um desafio ao qual tenho a plena consciência que tenho de dar resposta porque é preciso que esta descentralização aconteça. E a Cáritas tem de ser uma resposta presente nas várias paróquias.
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